"A primeira das casas que deu origem ao Bairro da Democracia foi a de dona Edite", registra o jornalista guardião da memória histórica e cultural de Ipiaú
A FEIJOADA DE DONA EDITE MARCOU ÉPOCA EM IPIAÚ
-José Américo Castro-
Verão de 1964. Após uma seca prolongada a chuva cai incessante em diversas regiões da Bahia. O rio de Contas encheu como há muito tempo não acontecia.
O rio Água Branca também se avolumou. Todos os riachos engordaram, transbordaram.
A cidade de Ipiaú ficou parcialmente ilhada e inundada. Pontes submersas, barrancos desmoronando, paredes desabando, casebres inteiros arrastados pela correnteza.
Economias e sonhos indo água abaixo, inúmeras famílias desabrigadas. A enchente fazendo estrago, calamidade pública.
Entre os que ficaram sem teto estavam a feirante Odete Silva de Souza, apelidada de Edite, seu esposo, o alfaiate Idelfon Elias de Souza, e uma renca de filhos.
A casa deles na Avenida São Salvador foi arrastada pela ferocidade barrenta do rio de Contas. Dona Edite vendia mingau na antiga feira da Praça Virgílio Damásio.
Um quarto da população vitimada pela enchente, problemão para a Prefeitura resolver.
Euclides Neto, o prefeito, conseguiu verba federal e desapropriou uma fazenda nos arredores da cidade, começando a construir inúmeras casas para alojar os desabrigados pela cheia.
A primeira dessas casas que deu origem ao Bairro da Democracia, foi a de dona Edite.
Enquanto o imóvel de 8 X 20 metros (quarto e sala) era erguido, em área íngreme, ela vendia mingau aos operários da construção.
Com o dinheirinho apurado passou a comercializar feijoada.
Na vizinhança só tinha a sede da fazenda desapropriada e desmembrada do espolio de Alberto Pinto. Nela morava o gerente Silvino Lima e sua família. A ladeira ganhou o nome de Rua Edvaldo Santiago.
Freguesia crescendo, o negócio prosperando, permitindo a ampliação da casa.
Nos badalados anos 70 a casa de dona Edite passou a ser o endereço mais visitado da rua, durante os finais de semana. A maior parte dos visitantes era constituída por boêmios que após as noitadas de festas e farras no Rio Novo Tênis Clube e outros points, para lá se dirigiam com a sede da saideira e a necessidade de recompor as energias perdidas na esbornia.
Até os ex-prefeitos Hildebramdo Rezende e Miguel Coutinho frequentavam o ambiente. João Kleber, Leão, Zebrinha e cia, também faziam parte desse elenco.
O movimento varava a madrugada, ia até altas horas da manhã. Gente de toda classe social, tipo e poder aquisitivo. Ninguém ficava com fome.
Tinha sempre alguém de virote chegando no pedaço.
O ambiente descontraído a poucos metros da “Feirinha” (Praça da Democracia), oferecia aconchego. Dona Edite e suas filhas, Irene e Lucia, atendiam a todos com muita paciência e sem distinção.
No fogão as panelas de prontidão e água no feijão pois chegou mais um.
Em cada caldeirão nada menos que 50 litros do alimento. Mocotó, linguiça, costela, miúdos de porco, carne do sol, toucinho, bacon, além de outros ingredientes, dando o sabor característico e bem gordo ao mais popular prato brasileiro.
Molho de pimenta e farinha, à vontade do freguês, completavam o cardápio. Os mais precavidos se limitavam a um copo duplo de caldo de feijão.
Enquanto comia e bebia, a freguesia compartilhava histórias, contava piada, recordava a noitada. Resenhas ao redor da mesa.
Tinha sempre alguém querendo mais e alguns nem aguentavam voltar para suas residências. Dormiam ali mesmo.
E dona Edite naquela paciência de quem sabia cativar a freguesia.
Natural de Ipiaú, antiga Rio Novo, dona Edite nasceu no dia 19 de agosto de 1926 e faleceu em 13 de janeiro de 2018, com a idade de 91 anos. Era filha de Domingos Pereira da Silva e Maria José da Silva. Frequentava a igreja evangélica Assembleia de Deus.
Suas irmãs: Teófila, Silvia, Margarida, Inês (mãe do folclórico Renato Gindê), Almerinda, Adilina, dona e professora de uma banca de reforço escolar na Avenida São Salvador, e Nenga, a caçula da prole, tiveram uma história de muito trabalho para garantir a sobrevivência das suas respectivas famílias.
Da banca de dona Adilina, ficaram famosos os bolos , com uma pesada palmatória, nos alunos que erravam o beabá e a tabuada.
Quando terminava a aula a meninada dava o troco, gritando , em plena rua: “ Adilina pé de pato, bacalhau 54; Adilina pé de pinto, bacalhau 55”. A treplica era certa. Uma vez eu errei e tive que estender minha mão à palmatoria. Me retei, mas não ficou nenhum trauma desse episódio.
Do relacionamento de dona Edite com o alfaiate Idelfon nasceram 19 filhos, dos quais apenas três estão vivos.
A vida de dona Edite se resumiu ao trabalho. Só parou de trabalhar quando tinha 82 anos e foi acometida pelo Mal de Alzheimer.
Conviveu com a doença por quase uma década e morreu aos 91 anos, em Ipiaú. Cumpriu sua missão.
A feijoada é sempre comentada por aqueles que tiveram o privilégio de degusta-la. Boas lembranças das resenhas, presepadas, gargalhadas…
É o povo que faz a história de uma cidade.
Texto extraído da página do jornalista José Américo Castro no Facebook. Clique
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