Mas a saga do ipiauense, que somou 980 pontos no Enem e tem vaga em qualquer universidade do nordeste, do sul e algumas do sudeste, não se resume a uma simples sentença matemática
Começa pelo primeiro episódio desta temporada de sua vida. Ele foi às redes sociais apelar por solidariedade: "Olá, meu nome é Cleiton e fui aprovado em Medicina na UFBA – melhor faculdade de medicina da Bahia – estou pedindo sua ajuda, em qualquer valor, para ajudar nas despesas nos meses iniciais até conseguir auxílio financeiro da faculdade"
.
Ele quer evitar uma segunda “devastação”, quando, por problemas financeiros, ficou impedido de cursar psicologia. "Fiquei devastado, uma vez que a psicologia era meu sonho",
recorda.
Essas suas experiências, passada e atual, é parte de uma página sinistra da educação pública brasileira, que insiste em não fechar. As universidades públicas costumam servir a uma abastada elite, que pode manter seus filhos em sofisticados sistemas privados de preparação e abocanham as vagas mais disputadas. A despeito de uma imensa maioria de estudantes entregues ao universo caduco da educação pública nacional.
Ele quebrou o tabu, cravou 980 pontos na Redação e fechou 745,72 no Sisu. Tem sua vaga assegurada no campus da cidade de Vitória Conquista da Universidade Federal da Bahia, onde vai cursar Medicina. Foi aprovado em 5º lugar nas cotas raciais.
Mas a sua trajetória não foi tão matematicamente assim. A inexatidão começou por sua definição vocacional. Pensou ser engenheiro, quando campeão de uma olímpiada nacional de matemática.
Acabou no curso de história da Faculdade Santo Agostinho de Ipiaú. Quis ser psicólogo, mas não superou o obstáculo financeiro.
Até que um AVC – Acidente Vascular Cerebral – de um tia, que ele tem como segunda mãe ou mãe paralela, fez a medicina povoar seus sonhos. "Quando isso ocorreu, foi um choque, já que ela era quem cuidava de toda a família e sempre esteve à frente",
conta.
"A minha ideia de futuro estava muito mais centrada na questão médica",
despertou Cleiton da Silva Santos, de 23 anos.
"Gosto de dizer que existe uma diferença entre aluno e estudante: enquanto o aluno apenas participa das aulas, o estudante vai além das aulas"
Mas os detalhes das temporadas anteriores de sua vida, a 2D conta num formato editorial diferente. A narrativa é do próprio Cleiton, que enviou um texto a nossa Redação, respondendo a alguns questionamentos, que preservamos dos cortes de edição.
Vai a íntegra de uma história vencedora e inspiradora. Leitura obrigatória, sobretudo para estudantes que tentam chegar onde ele chegou.
É filho de uma empregada doméstica
Meu nome é Cleiton da Silva Santos, tenho 23 anos e sou natural de Ipiaú, na Bahia, uma cidade pequena próxima a Jequié. Sou o primeiro de dois filhos da minha mãe; meu irmão se chama Caique e tem 21 anos. Minha mãe se Chama Jucelia Silva e é empregada doméstica e cuidadora de idosos. Ela se encontra desempregada desde o início da pandemia, quando teve que largar o emprego para poder ajudar a irmã dela (minha tia) que sofreu um acidente vascular cerebral (AVC ou derrame).
A professora Jussimara Gama era mais que professora
A minha trajetória escolar se inicia aos 5 anos quando fui matriculado em 2004 na escola Tertulina Pereira Andrade. As professoras Linde e Maria iniciaram-me nas primeiras letras e me mostraram o caminho dos estudos de forma proveitosa.
Anos depois, estudei na Adélia Matta e aprendi bastante com a professora Jussimara Gama, que não era apenas uma professora, mas também uma amiga, ela teve um impacto muito grande nessa caminhada.
Eu não era o aluno com as notas mais altas, mas com certeza era um dos alunos que admiravam-na como professora.
Medalha de bronze da Olímpiada Brasileira de Matemática
No ensino fundamental II eu estudei no colégio do meu bairro, o colégio Ângelo Jaqueira, e lá tive professores muito bons também, e vou dar um destaque à professora Raimunda, pois com o ensino em Matemática que ela proporcionou, eu ganhei a medalha de bronze na OBMEP (Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas) no ano de 2012.
Com esse feito, acabei indo para a UFBA em Salvador e recebi a medalha e certificado de participação da Olimpíada. Assim que ganhei, eu pensei que a Engenharia seria o meu chamado, mas chegando ao ensino médio percebi que não era aquilo.
Eu acabei me desmotivando e não sendo um estudante como eu deveria ser, pois estava sendo apenas um aluno. Gosto de dizer que existe uma diferença entre aluno e estudante: enquanto o aluno apenas participa das aulas, o estudante vai além das aulas e estuda por conta própria. Eu era apenas um aluno e fazia o suficiente para passar na média.
O terceiro ano e as dúvidas: dois anos sem estudar
Com a chegada do terceiro ano, dúvidas quanto à escolha de curso chegaram, e como sou uma pessoa que gosta de praticamente tudo, fiquei duvidoso em qual caminho seguir, já que eu pensava em Teatro, Música, Fisioterapia, Enfermagem, Psicologia, Pedagogia e Letras.
Terminei o ensino médio no Colégio Modelo Luís Eduardo Magalhães, em Ipiaú, e fiquei dois anos sem estudar. Nesse hiato, apenas participei de uma comunidade eclesiástica próxima ao meu bairro.
2017: a virada
Mas em 2017 veio à virada de mente: eu estava sem estudar há dois anos e sem uma perspectiva de futuro! Foi aí que estudei três meses no cursinho pré-vestibular do Colégio Montessori Santo Agostinho – um colégio particular em Ipiaú – e consegui o 1° lugar em História na UESC.
Foi de uma realização tremenda, mas ainda não estava completamente feliz, já que a minha primeira opção naquele momento era ingressar em Psicologia na UFBA. Fiquei na lista de espera, não fui chamado e fui cursar História na UESC. Fiquei dois anos lá e participei de um programa de bolsas da CAPES, chamado PIBID, que tem por objetivo oferecer uma experiência pedagógica mais profunda para a formação de professores da atenção básica.
A experiência foi incrível, não me arrependo de nada, pois atuar como professor estagiário me proporcionou momentos de alegria e motivação por estar aprendendo com os meus alunos.
Devastado por não poder cursar Psicologia
Nesse meio tempo de faculdade, eu me inscrevi e fiz o ENEM 2018, e nesse ano eu obtive média suficiente para passar em Psicologia na UFBA, e consegui, mas por problemas financeiros não pude ir e fiquei devastado, uma vez que a psicologia era meu sonho. Mas continuei a caminhar, dando uma chance de gostar do curso, até que veio a pandemia e tudo mudou.
No AVC da tia desponta a medicina
No início da pandemia a minha tia sofreu um AVC e isso desestabilizou toda a família, inclusive a mim que também fui criado por ela. Quando isso ocorreu, foi um choque, já que ela era quem cuidava de toda a família e sempre esteve à frente.
Com todas as dificuldades inerentes a esse processo, eu passei a pesquisar mais sobre as sequelas e formas de vida de uma pessoa que sofreu desse evento. Nisso eu fui me aprofundando, até que também conheci um amigo que faz Enfermagem na USP e passamos a dialogar sobre medicina e saúde pública.
Nesse período eu ainda estava na faculdade de História, até que num momento de epifania enxerguei que aquele curso não era mais pra mim, que a minha ideia de futuro estava muito mais centrada na questão médica do que na questão da docência.
Eu então decidi largar o curso e tentar estudar para conseguir à tão sonhada vaga em Medicina.
A família temeu, mas apoiou
No começo, a minha mãe ficou meio receosa, mas assim que expliquei detalhadamente a minha situação, ela apoiou imensamente a minha decisão de sair do curso, não apenas a minha mãe, mas meu irmão e a minha avó – que infelizmente veio a falecer na virada de 2020 para 2021. Essa ajuda foi essencial para o processo de contornar toda a minha vida.
No início de 2021 eu fiz o ENEM 2020, mas já esperava não passar, pois estudei apenas cinco meses, porém obtive uma média suficiente para passar em todos os outros cursos que eu quisesse, exceto Medicina.
As descobertas do ano de 2021
O ano de 2021 foi um ano de descobertas, aprendizado e muita gratidão. Eu fiz uma página de estudos no Instagram (@rickstudies_) e passei a compartilhar a minha rotina e algumas coisas que eu aprendi.
Lá conheci pessoas incríveis que estavam no mesmo barco que eu, com situações parecidas, e isso tudo me motivou a continuar. Nesse ano eu fazia vídeo-chamada com amigos para que pudéssemos compartilhar o que aprendemos, sempre nos ajudando em nossas dificuldades.
Isso tudo foi essencial para que eu não perdesse a minha confiança, minha autoestima e não adoecesse psicologicamente.
A dica: o estudante também é filho, namorado, amigo, neto...
Acredito que o estudante, nesse processo de vestibular, não deve se reduzir a uma categoria específica; é necessário que ele tenha o entendimento de que é um filho, namorado, amigo, neto…
É preciso que ele entenda que é um ser biosicossocioespiritual, cheio de complexidades que não cabem em um só adjetivo, para que ele não reduza a sua existência a um rótulo e adoeça quando um fator da vida não der certo. Dito isto, ter essa noção aliviou a minha vida e me pôs a continuar a caminhar.
O sonho da medicina: 980 pontos na Redação
Em novembro eu fui para Ribeirão Preto, em São Paulo, fazer o vestibular da UNESP, mas não consegui ir para a segunda fase por conta de uma só questão. Fiquei feliz apesar de não conseguir.
Nesse mesmo mês, fiz os dois dias do ENEM. Quando corrigi a minha prova, eu não tinha esperanças de passar, mas meu irmão e a minha mãe se mantiveram confiantes nisso.
Quando o resultado do ENEM saiu, eu me surpreendi com as minhas notas, pois vieram na medida certa para passar. Eu fiquei muito em choque quando vi o 980 na redação. UM CORRETOR HAVIA ME DADO 1000 E OUTRO 960. Eu fiquei incrivelmente feliz.
Aguardei o resultado do SISU e comemorei bastante com a minha família e amigos que estavam esperando ansiosos pelo resultado. Eu passei em 5° lugar de sete vagas nas cotas. Escolhi a UFBA de Vitória da Conquista por ser mais próxima da minha casa, mais barata em relação a Salvador, e também por conta da metodologia de ensino ser bastante inovadora.
As minhas notas também seriam suficientes para passar em todas as universidades da Bahia, algumas do sudeste, praticamente todas do Nordeste e Sul, como UFRJ, UNIRIO, UFC, UFSC, UFRGS e UFCSPA.
"O mais difícil é lidar consigo"
Acho que o mais difícil de todo esse processo não é o estudo em si, mas lidar consigo mesmo, com as suas próprias questões internas e continuar avante. Nesse caminho existe muita dureza, muita cobrança consigo mesmo – algumas das vezes – e é preciso entender que o processo pode ser lento, mas que valerá a pena cada segundo abdicado para se alcançar o objetivo almejado.
Temos que pensar que a disciplina de Física, Matemática ou Literatura não são as nossas rivais, apesar da dificuldade que podemos ter, mas o nosso olhar perante nós meses que definirá se aprendemos. Todo estudante deveria se cobrar menos e se entender mais.
Uma dica que dou a quem quer medicina, mais especificamente, já que é o curso mais concorrido, é: respeite o seu processo, não queime a largada, não pule etapas, vá no seu tempo, olhe apenas para o seu objetivo e para si mesmo.
Quando não respeitamos nosso processo, abandonamos a nós mesmos e vivemos como se fôssemos o outro e para o outro, e isso consome a saúde mental aos poucos. A realidade de um estudante de escola pública não é a mesma realidade que um estudante de escola particular passa, logo, além das especificidades que nos são inerentes. Então é necessário se respeitar e não se comparar, pois o processo individual só diz respeito a si mesmo, já que nós somos o nosso próprio parâmetro, não o outro.
"Uma oportunidade para ajudar a minha família"
Eu decidi ser médico por uma questão de propósito de vida. Tenho para mim que a Medicina é o que mais se encaixa no meu plano de futuro, é o curso que me dará maior contentamento e estabilidade, além de uma oportunidade para ajudar a minha família.
Não digo que escolhi ser médico para ajudar pessoas, pois ajudar pessoas não é exclusivo da Medicina, é também algo que a Enfermagem, Fisioterapia e as áreas de docência fazem muito bem. Escolhi a Medicina por gosto e afinidade.
Depois de completar o curso, pretendo fazer especialização ou pós-graduação na Europa e seguir na área de neurologia, neurocirurgia ou psiquiatria, pois sou fascinado pela complexidade que há nos processos neurais, e quero poder aprender mais sobre essa vastidão de informações que é o cérebro humano, além de poder fazer pesquisas que possam ser úteis para a cura ou tratamento de doenças ditas incuráveis.
A educação pública no Brasil
Num panorama geral, a qualidade da educação pública não é uma das melhores, e a minha realidade não foi diferente. Apesar de existirem professores incríveis que tentam sempre ajudar e fazer o seu melhor, a dificuldade das instalações, organização e manutenção do ensino são precárias. Desde salas superlotadas, professores faltosos até merenda faltando, tudo isso impacta nos estudos do aluno.
Eu presenciei essa realidade. Eu a vivi. É necessário que haja uma mudança no sistema educacional brasileiro para que um estudante de escola pública e baixa renda ingressar na universidade não seja mais uma exceção nos sistemas de ingresso dos processos seletivos, mas a regra demasiadamente almejada por aqueles que lutam por um ensino de qualidade.
Eu dedico essa conquista a todos aqueles que me apoiaram nesse processo: família, amigos e, em primeiro lugar, Deus. Eu não chegaria aqui sem eles, não conseguiria abdicar de um caminho quase feito para retornar a outro meio “incerto”.
Mas agradeço especialmente à minha mãe, que sempre me deu conforto nesse processo, à minha avó que desde sempre confiou em mim e à minha tia que, embora distante psicologicamente, cuidou de mim quando eu próprio não pude. Apenas gratidão.