Assim, 201 anos depois, seguimos dependentes – a nossa sina?-, buscando o salvador da pátria, reinventando fatos, recriando histórias, invisibilizando personagens e cunhando falsos heróis”, conclui
A famosa tela do pintor Pedro Américo – Independência ou Morte – foi encomendada por D. Pedro II, em 1886, mais de 40 anos depois da proclamação da independência pelo seu pai, com o objetivo de ornamentar o Salão Nobre do Museu do Ipiranga, em São Paulo, cujo edifício-monumento, fundado em 1895, foi reinaugurado em cerimônia oficial ocorrida em 2022, em homenagem ao bicentenário da independência, após nove anos fechado devido ao mau estado de conservação.
De inspiração europeia, o quadro neoclássico foi pintado em Florença em 1888 – às vésperas da proclamação da República -, sem a pretensão de retratar fidedignamente o ato de anúncio da independência, ocorrido naquele 7 de setembro de 1822.
A imagem foi idealizada para eternização solene do fato histórico que contribuiria para formação das almas, criando símbolo nacionalista e consagrando no imaginário popular um momento épico e glorioso em que o príncipe regente D. Pedro, que já anunciara o Fico, respondeu altivo à carta das Cortes portuguesas que o convocavam de volta a Portugal e transformavam o Brasil novamente em colônia portuguesa.
A cena retrata Dom Pedro I montado, em traje de gala, empunhando espada, tendo em volta os dragões da independência e passivos camponeses embasbacados, ao tempo em que bradava o seu “independência ou morte!”
Contudo, o quadro está bem longe de retratar a realidade daquele momento histórico. O próprio autor admitiu que ao desenhar a cena gravou mudanças em busca do equilíbrio entre verdade e idealização, anotando o seguinte: “A realidade inspira, e não escraviza o pintor”.
Em verdade, o ato não foi pomposo, tampouco decisivo, como retrata a pintura. A rigor, o Grito do Ipiranga foi mero rompante de encenação da independência, decretada 5 dias antes pela princesa Leopoldina durante reunião do Conselho de Estado, por ela convocado, sob a presidência de José Bonifácio, após o recebimento da Carta de Lisboa, em meio a conflitos e turbulências políticas e socioeconômicas.
Em primeiro lugar, naquela época – século XIX – as grandes distâncias eram percorridas por viajantes montados em mulas – mais resistentes – e não em cavalos. A casa pintada ao lado direito da tela – Casa do Grito – não existia na época, tendo sido construída de pau a pique em 1940, como pouso para viajantes.
A guarda de honra ainda não era fardada, vindo a sê-la meses depois. A pintura do homem carreiro, com roupas rasgadas e descalço, como pessoa do povo que assistia ao ato surpreso com a sua grandiosidade e heroísmo dos governantes, teve o propósito de representar a passividade e a condição de mero espectador do povo brasileiro, o que não corresponde à verdade, já que a independência foi alcançada com emprego de muitas lutas e negociações nas províncias.
Sem contar que relatos da época apontam que o príncipe se achava em condições intestinais nada confortáveis no momento em que recebeu a carta de independência subscrita pela princesa. Por fim, o riacho do Ipiranga foi incluído na parte final da tela para dar um ar ainda mais grandioso.
O propósito de forjar a identidade nacional colocou o 7 de setembro como nossa primeira data cívica, começo, meio e fim de um ato heroico de emancipação política. Mas não foi bem assim. Na prática, não houve independência e, infelizmente, houve morte, embora nos contem o contrário.
Embora insistam em narrativas para controle do passado, a nossa história não foi construída por atos personalistas conduzidos por tutores de um povo miscigenado, cordial, pacato e ordeiro rumo ao progresso da nação brasileira.
Essa versão romantizada teve a deliberada intenção de idealizar um país unificado em torno da coroa, escondendo mazelas como a escravidão, ocultando um passado de lutas populares, invisibilizando os verdadeiros heróis e heroínas da nossa história. Ocorre que o Brasil estava longe de estar unificado e pacificado.
Após o tal Grito do Ipiranga, fundou-se o Império do Brasil, o único da América, já que nos demais países foram instaladas repúblicas. Portanto, antes de celebrarmos abstratamente a “independência”, vale revisitar com criticidade nosso passado para compreensão do presente e projeção do futuro.
Assim, 201 anos depois, seguimos dependentes – a nossa sina?-, buscando o salvador da pátria, reinventando fatos, recriando histórias, invisibilizando personagens e cunhando falsos heróis.
Aurélio Belém do Espírito Santo é advogado e ex-diretor da OAB-SE. Este artigo foi extraído do Portal JLPolítica, onde ele tem uma coluna