Ricardo Westin
Publicado em 5/5/2023
Às 12h30 daquele sábado, 3 de maio de 1823, os cavalos pararam na frente da Cadeia Velha, no Rio de Janeiro, e da carruagem desceu D. Pedro I.
Fazia alguns anos que o prédio não servia mais de prisão e era usado pelo governo imperial com outros fins. A partir daquela tarde, abrigaria a Assembleia Constituinte, que tinha a missão de escrever, discutir e aprovar a primeira Constituição da história do Brasil.
Dom Pedro I foi recepcionado do lado de fora da Cadeia Velha por 12 deputados, que o escoltaram até o Plenário.
— Afinal raiou o grande dia para este vasto Império, que fará época na sua história. Está junta a Assembleia para constituir a nação. Que prazer! Que fortuna para todos nós! — discursou ele, acomodado num trono.
O Brasil independente engatinhava. Fazia apenas oito meses que D. Pedro I dera o grito às margens do Riacho do Ipiranga.
A criação de uma Constituição era urgente, já que essa é a lei que serve de base a qualquer nação, fixando o sistema de governo e estabelecendo direitos e deveres para os cidadãos.
— Disse ao povo, no dia em que fui coroado, que com a minha espada defenderia a pátria, a nação e a Constituição, se fosse dignar do Brasil e de mim — prosseguiu o imperador. — Ratifico hoje mui solenemente perante vós essa promessa e espero que me ajudeis a desempenhá-la, fazendo uma Constituição sábia, justa, adequada e executável, ditada pela razão, e não pelo capricho.
Realizada há exatamente 200 anos, a histórica cerimônia marcou o nascimento do Parlamento brasileiro. Desde esse momento, tirando alguns poucos anos de exceção no Império e na República, o país sempre teve o Poder Legislativo atuando.
O discurso em que D. Pedro I exigiu uma Constituição “digna do Brasil e de mim” faz parte, hoje, do acervo do Arquivo do Senado. Os documentos dos debates da Assembleia Constituinte de 1823, por sua vez, estão guardados no Arquivo da Câmara dos Deputados.
Pelos papéis, vê-se que os primeiros parlamentares ainda não tinham clareza sobre qual adjetivo deveriam usar para descrever as coisas do Brasil. Enquanto alguns diziam “brasileiro”, outros preferiam “brasiliense”, “brasiliano” e até “brasílico”.
Os documentos mostram que os deputados constituintes se reuniram algumas vezes antes de 3 de maio para decidir os detalhes do inédito cerimonial de inauguração do Parlamento.
Discutiram, por exemplo, se D. Pedro I deveria se posicionar na mesma altura do presidente da Assembleia ou um degrau acima dele.
— Sou de parecer que a posição que se lhe deve designar seja no mesmo plano onde estiver o senhor presidente, pois naquele ato é cabeça inseparável do corpo moral que representa a nação. Deixaria de o ser quando tivesse superior — opinou o deputado José Custódio Dias (MG).
Os parlamentares também debateram se D. Pedro I deveria ou não levar a coroa sobre a cabeça.
— O imperador deve entrar com a coroa e conservá-la enquanto durar a sessão — discursou o deputado Carneiro de Campos (BA). — Fundo-me em que o imperador vem instalar a Assembleia como chefe da nação e, por isso, não acho razão para que não conserve uma das principais insígnias na augusta função que ele vem exercer como imperante ou chefe da nação.
Não eram detalhes insignificantes. O deputado Antônio Carlos de Andrada (SP) explicou que, naquele momento em que o Poder Executivo passaria a compartilhar o governo do Brasil com o Poder Legislativo, a simbologia importava muito:
— Sendo Sua Majestade Imperial um Poder constitucional e a Assembleia outro, deve ser igual a situação de ambos quando presentes. Como a Assembleia não se cobre, também Sua Majestade Imperial deve entrar descoberto.
Ele continuou:
— Eu estou persuadido que no sistema constitucional se deve ser pródigo de honras, glória e esplendor para com o monarca e econômico de poder, [tendo ele tanto] poder quanto baste para o exato desempenho das funções que lhe atribui a Constituição, e não mais [poder] que lhe facilite a opressão dos outros Poderes igualmente constituídos.
No momento em que o Brasil se tornou independente, o mundo assistia à chegada de uma nova cultura política. O Ocidente, empurrado pela Independência dos Estados Unidos (1776) e pela Revolução Francesa (1789), deixava os tempos do absolutismo e mergulhava nos tempos do liberalismo constitucional.
Era, portanto, novidade que os governantes se submetessem a uma Constituição e dividissem as rédeas da nação com um Poder Legislativo eleito pelo voto.
No fim das contas, D. Pedro I entrou e discursou sem a coroa sobre a cabeça, mas seu trono foi posto num local mais alto que o da mesa do presidente da Assembleia.
O 3 de maio foi escolhido a dedo para a abertura do Poder Legislativo. Na época, acreditava-se que esse era o aniversário do Brasil. Só depois os estudiosos desfizeram o equívoco e concluíram que Pedro Álvares Cabral havia aportado na Bahia um pouco antes, em 22 de abril de 1500.
De acordo com os documentos de 1823, a cidadania foi um dos temas que mais mobilizaram os deputados. Por vários dias, discutiram quais habitantes do Brasil mereciam o status de cidadãos e as prerrogativas disso decorrentes, como votar e ser votado.
O deputado José Martiniano Pereira de Alencar (CE), que era padre e seria pai do escritor José de Alencar, discursou:
— Ainda que pareça que deveríamos fazer cidadãos a todos os habitantes do território do Brasil, não podemos seguir esse princípio sem ofender a suprema lei da salvação do Estado. É essa lei que nos inibe de fazer cidadãos aos escravos porque, além de serem propriedades de outros, amorteceríamos a agricultura, um dos primeiros mananciais da riqueza da nação, e abriríamos um foco de desordens na sociedade introduzindo nela de repente um bando de homens que, saídos do cativeiro, mal poderiam guiar-se por princípios de bem entendida liberdade.
O deputado Costa Barros (CE) seguiu o mesmo raciocínio:
— Eu nunca poderei conformar-me a que se dê o título de cidadão brasileiro indistintamente a todo escravo que alcançou carta de alforria. Negros boçais sem ofício nem benefício não são, no meu entender, dignos dessa honrosa prerrogativa. Eu os encaro antes como membros danosos à sociedade, à qual vêm servir de peso quando não lhe causem males.
Ele, então, apresentou uma emenda que previa a cidadania apenas para os ex-escravizados que tivessem “emprego ou ofício”.
O deputado Carneiro da Cunha (PB) discordou da exigência proposta e defendeu que todos os libertos se tornassem automaticamente cidadãos. Ele explicou:
— O escravo que se liberta tem a seu favor a presunção de bom comportamento e de atividade porque cumpriu com as suas obrigações e ainda, pelo seu trabalho, comprou a liberdade. Acho, por isso, que tais homens bem merecem o foro de cidadãos.
Costa Barros pediu novamente a palavra:
— Eu não estou persuadido disso. As cartas de alforria são quase sempre passadas por amor e a maior parte, a escravos malcriados.
Escravizados e indígenas são massacrados: Constituinte de 1823 debateu se deveriam ser considerados cidadãos(Jean-Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas)
O deputado José da Silva Lisboa (BA), futuro Visconde de Cayru, recorreu a um caso específico para defender a parcela negra da sociedade brasileira:
— Sou testemunha da indústria [trabalho] de um africano forro na Bahia, o qual tinha de arrendamento uma pequena terra vizinha a uma roça minha. Eu tinha escravos e ele, nenhum. Trabalhava com sua mulher e alguns filhos menores. A sua terra produzia muito mais e estava tão limpa que quase não se via folha ou planta inútil. Ele no domingo se banqueteava com galinhas que criava e na semana ainda lhe restava tempo para ir carregar cadeira na cidade. Ali vi a imagem da felicidade doméstica. E por que não se multiplicarão esses exemplos havendo boa legislação e polícia?
Segundo o deputado Maciel da Costa (MG), seria um erro conceder a cidadania aos libertos por “filantropia”. Ele lembrou a Revolução do Haiti. Na antiga colônia francesa, três décadas antes, os escravizados negros se rebelaram, massacraram os colonos brancos e tomaram o poder.
— Segurança política, e não filantropia, deve ser a base de nossas decisões. A filantropia deitou já a perder florentíssimas colônias francesas. Logo que ali soou a declaração dos chamados direitos do homem [da Revolução Francesa], os espíritos aqueceram e os africanos serviram de instrumento aos maiores horrores que pode conceber a imaginação.
Ele ainda lembrou que os Estados Unidos haviam acabado de criar na costa da África a colônia da Libéria, para onde estavam despachando os libertos em vez de conceder-lhes a cidadania norte-americana.
O destino dos indígenas também foi colocado na discussão. Discursou o deputado Manoel José de Souza França (RJ):
— Querem que todos os homens livres habitantes do Brasil e nele nascidos sejam cidadãos brasileiros. Agora pergunto eu: um tapuia é habitante do Brasil? É. Um tapuia é nascido no Brasil? É. Um tapuia é livre? É. Logo, é cidadão brasileiro? Não.
O deputado Montezuma (BA), futuro Visconde de Jequitinhonha, concordou:
— Os índios, falo dos não domesticados, estão fora do grêmio da nossa sociedade, não são súditos do Império, não reconhecem suas autoridades e vivem em guerra aberta conosco. Não podem de forma alguma ter direitos.
O primeiro Parlamento do Brasil se compôs apenas de deputados, eleitos pelas províncias. Não houve senadores. O projeto de Constituição em debate, contudo, já previa que o Parlamento seria dividido entre a “Sala de Deputados” e a “Sala de Senadores” assim que os trabalhos constituintes se encerrassem.
Apenas as províncias do Pará, do Maranhão, do Piauí e Cisplatina (hoje o Uruguai) não conseguiram mandar representantes para o Rio de Janeiro. Em maio de 1823 ainda estavam mergulhadas nas guerras da Independência e só meses depois confirmariam a separação do Reino de Portugal e a adesão ao Império do Brasil.
Apesar de o Parlamento convocado por D. Pedro I ser uma grande novidade, os brasileiros não a estranharam. Pelo contrário, abraçaram-na de imediato.
Em diversas sessões, as galerias da Assembleia Constituinte ficaram repletas de espectadores, numa demonstração de que reconheciam a legitimidade e a soberania do novo Poder.
Apoiar a Assembleia, contudo, nem sempre significava apoiar as suas decisões. No dia em que foi discutido o destino dos portugueses que haviam lutado contra a Independência, os “sussurros” (palavra usada pelos taquígrafos que transcreviam os debates) do público ficaram tão altos que os deputados se irritaram.
— Senhor presidente, tratemos de manter a ordem. O povo não deve tomar parte nas nossas discussões. Ordem, senhor presidente, é preciso ordem — esbravejou o deputado paulista Antônio Carlos de Andrada.
— Senhor presidente, o povo das galerias tem ousado perturbar com seus gritos os nossos discursos. Isso é contra o regimento. Eu peço a sua observância — apoiou o deputado Muniz Tavares (PE).
— À ordem, senhores das galerias, senão chamo a guarda e mando prender a todos — ameaçou o presidente da Assembleia, deputado Manoel Ferreira da Câmara Bittencourt e Sá (MG).
Outro sinal do apoio popular ao Parlamento como instituição foram as inúmeras petições populares enviadas de todos os cantos do Império aos deputados.
Muitas das petições que chegaram ao prédio da Cadeia Velha continham demandas políticas corriqueiras. O arraial de Pouso Alegre, na província de Minas Gerais, por exemplo, solicitou à Assembleia que fosse separado de Campanha e elevado à categoria de vila.
Outras trouxeram súplicas individuais que hoje em dia soariam estapafúrdias. Os herdeiros de uma senhora de Salvador pediram que a Assembleia os ajudasse no processo judicial que moviam contra um convento. Na ação, exigiam a devolução de uma fortuna doada pela bisavó, anos antes, aos religiosos da congregação.
As petições eram um instrumento de demanda popular comum época do absolutismo português e sobreviveram aos novos tempos. Antes dirigidas apenas ao rei, passaram a ser remetidas também ao Parlamento.
O Poder Legislativo é considerado o coração da democracia contemporânea porque, entre outras razões, abriga parlamentares de diferentes posições políticas e refletem em algum grau a diversidade da nação. Tal característica apareceu na Assembleia Constituinte de 1823.
Talvez tenha sido o deputado José Bonifácio de Andrada e Silva (SP) o exemplo mais ilustrativo. Num tempo em que a escravidão era quase naturalizada e pouco questionada, ele surgiu no Parlamento como voz dissonante e redigiu um documento pedindo aos colegas que aprovassem medidas em direção à abolição.
Bonifácio também surpreendeu a sociedade brasileira quando, 200 anos atrás, advogou pela transferência da capital do Império para o Planalto Central, pela proteção dos povos indígenas, pela conservação das florestas e pela execução da reforma agrária.
A escravidão apareceu apenas de forma superficial nos debates parlamentares de 1823, sem que se planejasse o fim desse sistema de exploração humana. Bonifácio não teve tempo de apresentar formalmente seu documento abolicionista porque D. Pedro I mandou as tropas cercar a Cadeia Velha e fechar sumariamente a Assembleia Constituinte em 12 de novembro.
O primeiro Parlamento do Brasil durou apenas oito meses, antes que pudesse aprovar a Constituição.
O imperador não estava satisfeito com o andamento dos trabalhos. Em primeiro lugar, ele queria que os legisladores aprovassem logo uma lei de imprensa que reprimisse os jornais que o criticavam — a Assembleia não estava incumbida apenas da Constituição, mas também das primeiras leis comuns do Brasil. A lei de mordaça da imprensa nunca veio.
Em segundo lugar, a Constituição que a Assembleia estava desenhando não dava superpoderes ao monarca. Isso contrariou D. Pedro I, que conservava certas lógicas do tempo do absolutismo e esperava estar acima do Poder Legislativo. Ele, em suma, entendeu que a Constituição não seria “digna do Brasil e de mim”.
Esse foi o primeiro golpe de Estado do Brasil, de acordo com a historiadora Neuma Brilhante, professora da Universidade de Brasília (UnB). Ela afirma:
— Houve uma ruptura à força da organização política estabelecida. Um Poder do Império derrubou o outro. Tratou-se, sim, de um golpe. Apesar de não ter podido cumprir a missão de entregar uma Constituição, seria um equívoco afirmar que aquele Parlamento fracassou e não serviu para nada.
Brilhante explica que os trabalhos desenvolvidos naqueles oito meses de 1823 dentro do prédio da Cadeia Velha foram decisivos para o moldar o Brasil:
— Ao contrário do que por muito tempo se disse, a Independência não veio porque já existia um sentimento de nacionalidade no Brasil. A Independência veio primeiro, e só depois se construiu a nacionalidade brasileira. Em termos institucionais, foi o Parlamento de 1823 que pensou o Brasil e o brasileiro que seriam criados após a Independência. Quem seriam os cidadãos? Quais seriam os direitos? Como seria repartido o poder? Os parlamentares tinham claro que a lei era capaz de construir e transformar a sociedade.
A historiadora lembra que o Parlamento deu voz às províncias, que eram um grupo heterogêneo, e assim harmonizou os interesses conflitantes. Isso foi importante, segundo ela, para que o Brasil ganhasse estabilidade política e não se fragmentasse em nações menores naqueles primeiros anos da Independência.
— Isto é algo que perdurou e temos até hoje: o Parlamento é o lugar mais privilegiado para pensar a diversidade do Brasil — ela avalia.
Os taquígrafos de 1823 transcreveram a reação dos constituintes ao receber o anúncio de que a Assembleia estava dissolvida.
— Pode o senhor oficial assegurar a Sua Majestade, da parte da Assembleia, que ela se dissolve — sem resistência, disse o presidente, deputado João Severiano Maciel da Costa (MG), ao oficial armado.
Indignados, alguns deputados não aceitaram a dissolução e pediram a palavra.
— Não sei para que se pede a palavra. As nossas discussões estão acabadas — resignou-se o deputado cearense José Martiniano Pereira de Alencar.
— Nós já não temos o que fazer aqui. O que resta é cumprir o que Sua Majestade ordena — acrescentou o deputado Antônio Carlos de Andrada.
Seis deputados, incluindo os irmãos Antônio Carlos e José Bonifácio, foram presos e mandados para fora do Brasil.
O Parlamento passou quase dois anos e meio fechado. Nesse ínterim, D. Pedro I outorgou a primeira Constituição do Brasil.
A Carta de 1824 foi baseada no projeto dos constituintes de 1823, com algumas diferenças importantes. Em vez de três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), o Brasil passou a ter quatro.
O Poder Moderador desequilibrou a balança, fazendo-a pender para o lado do imperador. Ele ganhou a prerrogativa de dissolver a Câmara dos Deputados nos momentos de crise e convocar novas eleições.
D. Pedro I retardou a reabertura do Parlamento o máximo que pôde. O Senado e a Câmara seriam inaugurados apenas em 3 de maio de 1826.
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Reportagem:
Ricardo Westin
Edição:
Cintia Sasse
Pesquisa histórica:
Arquivo do Senado
Edição de foto:
Ana Volpe
Edição multimídia:
Aguinaldo Abreu
Imagem de abertura:
Interior da Cadeia Velha por volta de 1828, como sede da Câmara dos Deputados; em 1823, prédio abrigou a primeira Assembleia Constituinte do Brasil (livro Notices of Brazil, de R. Walsh/Biblioteca do Senado)
Fonte: Agência Senado