Previsto na Lei 13.431/2017, voltada para a normatização do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, o depoimento especial acaba de ser implantado na Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes Contra a Criança e o Adolescente (Dercca) de Salvador. A legislação estabelece que o depoimento será gravado e utilizado em todas as etapas do processo judicial.
Titular da Dercca desde março deste ano, a delegada Simone Moutinho explica que um software foi adquirido para viabilizar o depoimento especial, iniciado em fase piloto no último dia 07. A estratégia também requer uma sala especial para a oitiva, além da capacitação dos investigadores nessa técnica. Ela diz que a meta é que todos sejam preparados, mas atualmente a unidade conta com profissionais habilitados em todos os plantões.
O depoimento especial é uma forma de evitar que a criança ou adolescente seja ouvido várias vezes, esclarece a delegada, acrescentando que se a vítima não desejar depor, a Polícia Civil apenas grava essa resposta negativa. A proposta é que o depoente fale livremente sobre a situação ocorrida, sem interrupções, mas a Lei 13.431 prevê a possibilidade de intervenção caso o investigador considere necessário para a elucidação dos fatos.
Depoimento
“O processo perpassa por uma avaliação da autoridade se efetivamente é necessário que aquele depoimento seja feito, se ele não for imprescindível para as investigações, se der para dar encaminhamento às investigações sem o depoimento, a gente pode abrir mão dele. Infelizmente, na maioria das vezes é necessário”, conta Simone.
Conforme a legislação, “no curso do processo judicial, o depoimento especial será transmitido em tempo real para a sala de audiência, preservado o sigilo”. Ao final, após consultar representantes do Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos, o juiz avaliará a pertinência de perguntas complementares. A Lei também garante o direito a ser ouvida diretamente pelo juiz, se a vítima ou testemunha assim desejar.
A coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Criança e do Adolescente (Caoca) do Ministério Público da Bahia, Márcia Rabelo, afirma que o órgão tem atuado para aprimorar a sistemática de depoimento especial no estado. “A prática mostrou como as inquisições diretas de delegado, juiz, promotor e advogado são também violência ou revitimização, faz rememorar toda a violência sofrida”, ressalta.
Márcia reforça a importância da busca de provas indiretas nos inquéritos relativos à violência sexual. O que representa foco em perícias, depoimento de parentes, vizinhos, profissionais de educação, de forma a salvaguardar ao máximo a saúde mental dessa criança ou adolescente, defende a promotora.
Segundo informado pela assessoria de comunicação da Polícia Civil, há a possibilidade de implantação do depoimento especial em delegacias de outros municípios, mas atualmente ele acontece apenas em Salvador e somente na Dercca.
Isolamento
Embora as estatísticas da Secretaria de Segurança Pública da Bahia mostrem uma redução de 13,5% no registro de estupro de crianças e adolescentes entre 2019 e 2020, os números podem ser reflexo de subnotificação motivada pela pandemia de Covid-19. A ponderação é feita pela coordenadora do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), Luciana Reis.
“Com a necessidade dessas medidas restritivas, a gente não tem o que chamamos de porta de entrada efetivamente funcionando”, lembra Luciana, citando o fechamento das escolas e o funcionamento dos Conselhos Tutelares em regime de plantão. “É como se a gente estivesse abafando esses casos, pois muitos nessa situação estão em casa com seus abusadores e não têm nenhuma válvula de escape”, analisa.
De acordo com a assessoria de comunicação da Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude (SPMJ), os Conselhos Tutelares de Salvador voltaram a funcionar normalmente em 29 de agosto do ano passado, com expediente das 8h às 18h nas suas respectivas sedes.
Para a coordenadora do Cedeca, crianças e adolescentes vítimas de violência sexual precisam de vínculos muito bem estabelecidos antes de conseguirem falar sobre a situação, o que é praticamente inviabilizado pela permanência em casa. Outro aspecto apontado por ela é a reconfiguração da exploração sexual, que fica menos presente em ruas e rodovias e passa a funcionar como uma espécie de “delivery do sexo”.
Na avaliação de Luciana, a sociedade de modo geral não está preparada para lidar com os casos que envolvem violência sexual, seja abuso ou exploração, mas essa dificuldade se manifesta mais gravemente na exploração. “A sociedade tem um papel muito punitivo, a sociedade julga e pune as meninas e meninos que estão na teia da exploração sexual”, afirma.
A Tarde Online
Jane Fernandes