Especialista ouvida pelo bahia.ba aposta em ações de prevenção, não apenas repressão, para evitar que mulheres sejam vítimas de feminicidas
Horas após a morte da estilista Tatiana Fonseca, na manhã de quinta-feira (10), baleada pelo ex-namorado, João Miguel Pereira Martins, conhecido como DJ Frajola, que se suicidou após o crime, o governo do estado assinou o Protocolo do Feminicídio da Bahia. A ferramenta que determina diretrizes e procedimentos a serem adotados na condução de crimes cometidos contra mulheres é resultado de um grupo de trabalho interinstitucional criado em 2019 e renovado para monitoramento de sua aplicação.
O caso desta semana, que aconteceu na Pituba, entra para uma estatística que contabiliza 98 casos de feminicídios no estado apenas entre janeiro e novembro de 2020. Os números de dezembro ainda não estão consolidados, mas os dados deste ano já apontam crescimento na prática desse crime, uma vez que em todo o ano de 2019 a Secretaria de Segurança Pública registrou 92 casos de feminicídio em toda a Bahia.
Em entrevista ao bahia.ba, a secretária de Políticas para as Mulheres, Julieta Palmeira, explicou que o protocolo assinado pelas secretarias de Segurança Pública (SSP), de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS), de Administração Penitenciária (Seap), além da Procuradoria-Geral do Estado, Defensoria Pública, Tribunal de Justiça e Ministério Público, poderia já ser aplicado em casos como o de quinta-feira, na medida que se padroniza e integra os procedimentos, com histórico de violência do agressor para ser utilizado na investigação e como base para decisões do juiz ou da juíza.
“[o juiz ou a juíza] julga pelos dados que estão especificados no processo. Muitas vezes os dados não são consubstanciais para tomar definição e isso pode levar à injustiça. Não por culpa do juiz ou da juíza, mas pela insuficiência de dados e provas que acontecem em grande parte desse processo. Isso nos preocupa porque tem levado à impunidade. As pessoas começam a questionar a lei”, observa a secretária.
Baixa taxa de solução
A preocupação tem motivos reais para existir. A advogada criminalista Daniela Portugal, doutora em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia e professora da mesma instituição, além da Faculdade Baiana de Direito, menciona pesquisa do Instituto Sou da Paz de 2019, segundo a qual o Brasil deixa de resolver cerca de 70% dos casos de homicídio registrados. A taxa de solução nos estados que forneceram dados – o que considera número de homicídios registrados e oferecimento de denúncia, sem considerar o desfecho – foi de 10%. Isso em relação aos homicídios gerais, sem especificar feminicídio, e observando que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. De acordo com Daniela, que também é pesquisadora feminista e abolicionista, grande parte dos apenados do país estão na cadeia por crimes não-violentos, como tráfico de entorpecentes e furto.
Se no geral a taxa de solução é baixa, o mesmo equivale aos casos de feminicídio. Dados de um relatório do Conselho Nacional de Justiça divulgados em 2018 apontam que o Judiciário baiano foi o que menos proferiu sentenças em casos de violência contra a mulher nos dois anos anteriores. Em 2016, houve uma sentença. Em 2017, nenhuma. A desembargadora Nágila Brito, coordenadora de Enfrentamento à Violência contra a Mulher do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA), questiona os dados.
Por outro lado, o mesmo relatório aponta o Índice de Atendimento à Demanda foi de 70% em 2016 e 233% em 2017. O indicador avalia a capacidade do tribunal de baixar processos em número equivalente ao quantitativo de casos novos.
“Existe algo muito errado na estrutura de funcionamento dos nossos órgãos de controle e passam por releitura institucional. Não se trata de analisar a produtividade individual dos juízes, promotores, delegados e policiais. É analisar de que maneira o Estado aparelha no âmbito federal, estadual e municipal esses órgãos de proteção à mulher e de enfrentamento à violência doméstica e familiar”, avalia a Daniela.
Para a especialista, existe uma série de fatores que impedem o cumprimento pleno do que determina e Lei Maria da Penha, criada para defender as mulheres em casos de violência doméstica e de gênero. Entre esses fatores, o número de varas destinadas ao processamento de casos de violência doméstica familiar contra mulher, número de Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAMs), o volume de demandas. Segundo a especialista, há um excesso de demanda para uma equipe pequena em atuação.
“A Bahia aplica medidas protetivas de urgência, mas não condena. Quando tem caso de violência doméstica, o fato dá origem ao processo relacionado à concessão das medidas protetivas, mas também precisa gerar o processo criminal com relação ao delito praticado. No que diz respeito aos processos relacionados às medidas protetivas, as varas conseguem atuar – existe urgência e as demandas passam na frente. Mas no que diz respeito a processos criminais, que vão processar e julgar crimes, a gente tem uma ineficiência bastante evidente”, acrescenta.
Pandemia atrapalha proteção
O período de pandemia tem atrapalhado a atuação do Estado na proteção a mulheres que convivem diretamente com seus agressores. A desembargadora Nágila Brito, coordenadora de Enfrentamento à Violência contra a Mulher do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA), afirma que o número de medidas protetivas caiu entre janeiro e novembro deste ano, no comparativo com o ano anterior. No entanto, o número de feminicídios aumentou 6,5% se considerado o mesmo período e os primeiros dias de dezembro.
Entre 1º de janeiro e 30 de novembro de 2019, foram 14.095 medidas protetivas concedidas. Neste ano, 12.808. E entre 1º de janeiro e 06 de dezembro de 2019 aconteceram 93 feminicídios no estado. No mesmo período de 2020, foram 99.
A magistrada aposta na medida protetiva como crucial para salvar a vida das mulheres, na medida que assegura a distância do seu agressor. A tipificação do descumprimento da medida é também um reforço à segurança das vítimas, já que o juiz ou a juíza responsável pelo caso pode determinar a prisão preventiva do agressor.
“Mesmo sendo decisão judicial que deveria ser respeitada, a gente sabe que tem aqueles que não respeitam mesmo e querem matar. Alguns dizem que só não matou ainda porque não quis. A gente não tem bola de cristal pra saber que aquela pessoa está ameaçando de verdade. [Agora] Toda mulher em situação de violência doméstica vai preencher o formulário de risco, porque vai ter condição de avaliar o risco, se medidas protetivas concedidas são suficientes ou se a situação é muito grave, se tem probabilidade de feminicídio, decretar prisão preventiva”, observa a magistrada.
Em entrevista ao bahia.ba, a desembargadora destacou que todos os atores do Sistema de Justiça devem agir corretamente na aplicação da Lei Maria da Penha. Isso inclui não apenas o Poder Judiciário, como delegados, agentes de polícia, Ministério Público e Defensoria Pública.
Prevenção ou repressão?
Feminicídio implica dizer que a mulher foi morta devido à crença do companheiro de que tem poder sobre seu corpo e sua existência. A atuação do Estado precisa considerar que, por mais esforço que se faça para reprimir esse crime, nada será capaz de trazer de volta as vidas que foram perdidas. Para Daniela Portugal, advogada criminalista, doutora em Direito Público e professora da Ufba e da Faculdade Baiana de Direito, o Estado precisa concentrar seus investimentos sobretudo na prevenção.
A especialista reforça que não é deixar de punir ou solucionar os homicídios de mulheres, mas evitar que eles venham a acontecer. Algumas práticas direcionam para esse sentido, como facilitar o acesso de mulheres aos órgãos de controle para denúncia de violências psicológica, morais, patrimoniais, sexuais; trabalhar com políticas de conscientização desde a infância, para que garotas já cresçam discutindo essas temáticas; não culpabilizar mulheres que busquem o Estado e fazer cumprir a Lei Maria da Penha e outras normas protetivas.
A secretária Julieta Palmeira, titular da Secretaria de Políticas para as Mulheres, afirmou ao bahia.ba que o Protocolo do Feminicídio inclui as ações de prevenção, entre as quais o uso de tornozeleiras eletrônicas para monitorar agressores impedidos de se aproximarem de suas vítimas. De acordo com a gestora, a Seap já separou uma cota destinada para os casos de violência doméstico-familiar. Outra medida é a maior atenção dos profissionais de saúde nos casos de mulheres que deem entrada nas unidades por terem sofrido algum tipo de agressão.
“Como previne o feminicídio? Prevenindo a violência que acontece no ciclo de violência até o feminicídio. Começa com um tapa, algum tipo de violência que fere a integridade física da mulher. Começa com violência psicológica ou patrimonial”, lembra Julieta.
A secretária lembra que a violência contra as mulheres é fruto da cultura misógina que replica desigualdade de gênero, e é preciso iniciativas que englobem ações de sensibilização voltadas para essa desconstrução.
Bahia.Ba