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Aos 20 anos, Estatuto da Pessoa Idosa ainda enfrenta resistência

Quando se fala dos direitos da população idosa, as pessoas em geral pensam apenas na fila preferencial, nas vagas reservadas de estacionamento e na gratuidade nos ônibus urbanos, mas o Estatuto da Pessoa Idosa é muito mais do que isso

O Estatuto da Pessoa Idosa (Lei 10.741, de 2003) completa 20 anos neste domingo (1º). Especialistas ouvidas pela Agência Senado afirmam que, graças à lei, o Brasil avançou consideravelmente na proteção das pessoas mais velhas, mas advertem que parte das determinações legais ainda é desobedecida.

A norma, que garante uma série de direitos à população a partir dos 60 anos de idade e prevê punições a quem os desrespeita, nasceu de um projeto de lei apresentado em 1997 pelo hoje senador Paulo Paim (PT-RS), na época deputado federal.

Após a aprovação na Câmara e no Senado, o Estatuto da Pessoa Idosa foi sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 1º de outubro de 2003. Essa foi a data escolhida para a criação da lei por ser o Dia Internacional da Pessoa Idosa.

— Por causa da lei, a velhice deixou de ser vista como doença e se transformou num direito personalíssimo. A população idosa saiu da invisibilidade — avalia Paim.

Os senadores comemorarão o 20º aniversário do Estatuto da Pessoa Idosa com uma audiência pública nesta segunda-feira, às 9h, na Comissão de Direitos Humanos (CDH).

De acordo Paim, mesmo estando em vigência há tanto tempo, ainda existe muito desconhecimento a respeito do estatuto:

— Quando se fala dos direitos da população idosa, as pessoas em geral pensam apenas na fila preferencial, nas vagas reservadas de estacionamento e na gratuidade nos ônibus urbanos, mas o Estatuto da Pessoa Idosa é muito mais do que isso. Ele busca garantir a dignidade dos idosos em áreas como saúde, educação, cultura, lazer, trabalho, previdência social e habitação.

Jornal Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro, noticia em 2003 a criação do estatuto (Biblioteca Nacional Digital)Fonte: Agência Senado

O estatuto dá às pessoas idosas, por exemplo, rapidez na restituição do Imposto de Renda, prioridade no julgamento dos processos judiciais e direito a acompanhante em tempo integral nas internações hospitalares.

Também prevê proteção contra aumentos abusivos nos planos de saúde, vantagem nos concursos públicos em caso de empate com candidatos mais jovens e cota de 3% das casas ou apartamentos à venda em programas habitacionais financiados com verba pública.

A lei protege os idosos da violência física e da psicológica. Hospitais, clínicas e postos de saúde, recebendo pacientes nessa situação, ficam obrigados a notificar a polícia e o Ministério Público, inclusive quando não há a certeza da violência e se trata apenas de suspeita.

A presidente da Rede Ibero-Americana de Associações de Idosos do Brasil, Maria Machado Cota, concorda que a sociedade conhece pouco o estatuto, o que prejudica a sua execução. Ela lembra que um dos artigos obriga os meios de comunicação a veicular com frequência informações sobre o processo de envelhecimento:

— As emissoras de rádio e televisão, que são concessões do poder público à iniciativa privada, deveriam ceder espaço, mas não cumprem a determinação. O próprio poder público não faz campanhas amplas de divulgação do Estatuto da Pessoa Idosa. É como se ninguém quisesse que os idosos o conhecessem. É essencial que também as famílias e a sociedade como um todo tenham esse conhecimento, já que muitos idosos não têm condições de exigir o cumprimento dos seus direitos.

Idosos são atendidos na Central Judicial do Idoso do Tribunal de Justiça do Distrito Federal.

Entre os problemas persistentes que assombram a população idosa, Cota cita a desvalorização das aposentadorias e das pensões:

— Toda vez que se fala em valorização real do salário mínimo, surge uma grita dos gestores públicos, em especial os prefeitos, que dizem que não têm dinheiro para arcar com o aumento do gasto com os servidores ativos e inativos. Esses gestores se esquecem de que aqueles que recebem um, dois ou três salários mínimos, que são a maioria, não vão gastar o dinheiro em Nova York ou Paris. Vão gastar na cidade em que vivem, estimulando o setor produtivo, gerando empregos e pagando impostos aos cofres públicos. Não entendo esse medo de partilhar a riqueza do país com o trabalhador, o aposentado e o pensionista.

Outro fator que atenta contra a dignidade da população idosa, segundo Cota, é o superendividamento decorrente do crédito consignado, a modalidade de empréstimo em que as parcelas são descontadas da aposentadoria ou da pensão automaticamente todo mês, sem que o dinheiro entre na conta do idoso.

— Os dados financeiros dos idosos deveriam ser sigilosos, mas ficam disponíveis para bancos e financeiras, que fazem um assédio violento sobre eles. Primeiro, o assédio é para que os idosos contratem empréstimos a juros altíssimos. Depois, quando já estão endividados até o pescoço, o assédio é para que eles renegociem e renovem o empréstimo com condições igualmente abusivas.

Ela continua:

— O problema não é o crédito consignado em si, mas o modus operandi das empresas. Os idosos pagam, pagam e pagam, mas nunca conseguem se livrar da dívida, que vira uma bola de neve. Eles, não bastasse o baixo poder de compra das aposentadorias e pensões, estão enchendo os bolsos dos banqueiros e dos empresários das financeiras. O Estatuto da Pessoa Idosa prevê penalidades para isso, mas ainda não conseguimos fiscalizar.

Plenário do Senado Federal durante sessão deliberativa ordinária. À tribuna, em discurso, senador Paulo Paim (PT-RS). Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

A assistente social Albamaria Abigalil, que foi secretária nacional de Promoção Humana no governo Itamar Franco (1992-1995), aponta a falta de verbas públicas entre os motivos para que muitos artigos do estatuto não sejam cumpridos à risca, como os que dizem que as necessidades de saúde da população idosa precisam ser atendidas de forma integral e gratuita:

— Os idosos estão organizados em várias associações, mas têm dificuldade para fazer sua pauta avançar por causa do idadismo, o preconceito de idade que existe não apenas na família e na sociedade, como também no próprio Estado. É por essa razão que os recursos para as pessoas idosas no Orçamento público são irrisórios.

Ela entende que os idosos estão submetidos a uma “situação cruel”:

— Vivemos num mundo capitalista neoliberal que, por questões financeiras, dá muita importância à juventude e ao vigor físico. Quando a pessoa envelhece e deixa de produzir a mais-valia, ela perde valor no mercado e passa a ser considerada um peso. Muitas vezes o declínio físico ocorreu de forma acentuada justamente por causa das pressões da vida laboral e da falta de acesso à rede de saúde.

Para Abigalil, é um equívoco enxergar como gasto, não como investimento, o dinheiro destinado às políticas públicas para a população idosa:

— Parece que ninguém enxerga que as pessoas idosas contribuíram a vida inteira com a economia e o país e trazem experiências que são fundamentais para a estabilidade das famílias e da própria sociedade. Na pandemia de coronavírus, uma quantidade enorme de pessoas idosas sustentou financeiramente a família inteira, incluindo os filhos que ficaram desempregados e os netos.

Prefeitura de Itapevi (2018.10.01) Dia Internacional do Idoso Foto: Felipe Barros/ExLibris/PMI

Na avaliação da professora Leides Moura, coordenadora na Universidade de Brasília (UnB) do Grupo de Trabalho Envelhecimento Saudável e Participativo, o idadismo estrutural não se reflete apenas na carência de verbas públicas.

Como exemplo, ela cita o artigo do Estatuto da Pessoa Idosa que determina que o currículo de todos os estabelecimentos de ensino, desde a educação infantil até o ensino superior, inclua conteúdos que preparem os alunos para o processo de envelhecimento e os estimulem a respeitar e valorizar a pessoa idosa:

— Não é só por questões financeiras que essa determinação não sai do papel, mas por falta de articulação do poder público e de priorização na agenda da educação. Para que os currículos se adaptem, é necessário que o Ministério da Educação se articule com estados, prefeituras e movimentos sociais. O novo Plano Nacional de Educação 2024-2034 precisa contemplar os artigos do estatuto em suas metas. Isso provocaria grandes mudanças. Quando entendem a importância da velhice, os jovens criam um país melhor não só para os idosos de hoje, mas também para si próprios, que no futuro também serão idosos.

A norma que pela primeira vez trouxe uma lista de direitos específicos para a população idosa data de 1994. Trata-se da Lei 8.842, que também criou os Conselhos do Idoso nos âmbitos federal, estadual e municipal.

As mudanças esperadas na sociedade, contudo, não vieram. Sentindo a necessidade de uma nova lei que fosse mais abrangente, detalhada e punitiva, as organizações representativas dos idosos pressionaram o Congresso Nacional. Foi assim que surgiu o Estatuto da Pessoa Idosa.

O projeto de lei foi redigido pelo então deputado Paulo Paim com a colaboração de especialistas e organizações da sociedade, como a Confederação Brasileira de Aposentados e Pensionistas (Cobap).

Ao longo dos seis anos em que o projeto esteve em estudo no Congresso Nacional, diversos debates públicos foram realizados em universidades, sindicatos e associações por todo o Brasil.

Nos meses anteriores à aprovação do estatuto, a causa da população idosa ganhou o apoio da televisão. Em 2003, a novela Mulheres Apaixonadas, da TV Globo, trouxe entre seus personagens um casal de idosos que era constantemente maltratado física e psicologicamente pela neta. A novela está sendo reexibida neste momento.

Na época, Carmen Silva e Oswaldo Louzada, os atores que interpretaram os avós, participaram de uma audiência pública no Senado em que apoiaram o Estatuto da Pessoa Idosa. A atriz Regiane Alves, que fez o papel da neta, também esteve na Casa e pediu a aprovação do projeto, o que ocorreu semanas depois.

De acordo com as especialistas entrevistadas pela Agência Senado, o Estatuto da Pessoa Idosa foi criado num momento de transição demográfica, em que a população brasileira deixava de ser jovem e começava a se tornar idosa, seguindo o caminho já trilhado por países desenvolvidos.

No caso desses países, o envelhecimento ocorreu lentamente, no decorrer do século passado, o que lhes deu o tempo necessário para fazer os ajustes necessários à inclusão social da população idosa. No Brasil, o processo é recente e bem mais acelerado.

Em 1980, apenas 6% dos brasileiros tinham 60 anos de idade ou mais, de acordo com do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Atualmente, o índice beira os 15%. Em 2040, os idosos responderão por quase 25% da população nacional.

Foto: Roosewelt Pinheiro Quarta- feira, 28 de maio de 2003 Subcomissão temporária do Idoso Audiência pública atendendo ao requerimento de autoria da senadora Iris de Araújo, com a presença de Osvaldo Louzada e Carmem Silva. Mesa : Osvaldo Louzada, ator global da novela ‘Mulheres Apaixonadas’ em discurso ao lado da atriz Carmem Silva. Local: Ala Senador Nilo Coelho – Sala 2 OBS: Solicitamos sua atenção para o cumprimento da Lei do Direito Autoral n.º 5988, de 14 de dezembro de 1973, Cap. IV,Parágrafo 1º do artigo 82º, que determina: “A fotografia quando divulgada, indicará de forma legível, o nome de seu autor”. O crédito deverá ser dirigido à Roosewelt Pinheiro / Agência Senado.
José Sarney, então presidente do Senado, recebe a atriz Regiane Alves e o ator Daniel Zettel. Foto: Geraldo Magela/Agência SenadoFonte: Agência Senado

Na avaliação da assistente social Albamaria Abigalil, o Brasil não tem demonstrado preocupação com o chamado bônus demográfico, período em que a população economicamente ativa ainda é maior que a inativa:

— Este é o momento em que o país mais deveria preparar a sociedade para o envelhecimento, mas a chance está sendo perdida. Faltam respostas adequadas nas áreas da educação e do trabalho, por exemplo, embora o Estatuto da Pessoa Idosa dê os instrumentos necessários. A reforma trabalhista e a previdenciária que se fizeram nos últimos anos não se preocuparam com o envelhecimento populacional. Daqui a alguns anos, quando o Brasil for majoritariamente idoso, poderá ser tarde demais.

Existem propostas para elevar de 60 para 65 anos a idade do grupo protegido pelo Estatuto da Pessoa Idosa, sob o argumento de que muitos indivíduos ainda são bastante ativos, ágeis e saudáveis aos 60. Maria Machado Cota, da Rede Ibero-Americana de Associações de Idosos do Brasil, discorda dessa ideia:

— O capital não quer que descansemos. A reforma previdenciária de 2019 aumentou a idade mínima da aposentadoria das mulheres para 62 anos dos homens para 65. O capital quer nos explorar, beber o nosso sangue até o fim. Na casa dos 60 anos, as pessoas dificilmente encontram emprego digno. O que existem para essa população são postos de trabalho precários, com baixo salário e sem carteira assinada.

A professora Leides Moura, da UnB, também vê com preocupação as propostas que elevam a faixa etária da população protegida pelo estatuto:

— Vivemos numa sociedade extremamente desigual. Muitas pessoas, de fato, chegam hígidas aos 60 anos. Outras, porém, não conseguem sequer chegar a essa idade. Certos grupos envelhecem precocemente, como a população carcerária, a LGBTQIA+, a negra, a pobre etc. Certas condições que encurtam a vida podem ser modificadas com alguma facilidade, como o sedentarismo, o abuso do álcool e a má alimentação. Outras, não, entre as quais a pobreza e a discriminação. Subir a idade significa aprofundar as desigualdades do Brasil.

Ainda segundo Moura, quando determinações do estatuto aprovado 20 anos atrás são descumpridas, uma consequência visível é a morte precoce de pessoas idosas:

— Se não há promoção da saúde e proteção contra a violência, elas morrem, sim, mais cedo. É contraditório que por tanto tempo tenhamos buscado na ciência formas de aumentar a nossa longevidade e agora, quando enfim temos sucesso nisso, não nos preocupemos em dar dignidade e qualidade a esses 20 ou 30 anos a mais de vida que conquistamos.

Saiba mais:


Reportagem: Ricardo Westin
Edição: Valter Gonçalves Jr.
Pesquisa de fotos: Ana Volpe e Bernardo Ururahy
Edição Multimídia: Bernardo Ururahy
Foto de capa: Tony Winston/Agência Brasília
Fonte: Agência Senado

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