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Criado há 70 anos para alavancar indústria, BNDES não tinha o S de social

A lei de criação do BNDES foi assinada em 20 de junho de 1952 pelo presidente Getúlio Vargas e seu ministro da Fazenda, Horácio Lafer

Em meados do século passado, a indústria brasileira ainda engatinhava e não tinha perspectiva de crescer e ir muito longe. Primeiro, porque o país não oferecia a infraestrutura adequada. As usinas hidrelétricas, as redes de distribuição de energia, os portos, os aeroportos, as ferrovias e as rodovias eram escassas e precárias. Depois, porque os empresários não encontravam no mercado o capital necessário para investir nas fábricas.

A situação começou a mudar há 70 anos. O divisor de águas foi a fundação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que nasceu com a missão de destravar e modernizar a indústria e, como consequência, alavancar toda a economia nacional. Ele faria isso oferecendo ao mercado empréstimos com juros mais baixos e prazos de quitação mais longos que os oferecidos pelos bancos comerciais.

A lei de criação do BNDES foi assinada em 20 de junho de 1952 pelo presidente Getúlio Vargas e seu ministro da Fazenda, Horácio Lafer.

Ao longo destes 70 anos, o banco estatal de fomento financiou obras de infraestrutura como a Rodovia Transamazônica, a Ponte Rio-Niterói e a Usina Hidrelétrica de Itaipu e empresas como a Embraer, a Eletrobras e a Companhia Vale do Rio Doce.

O BNDES surgiu pequeno e aos poucos cresceu até tornar-se um dos maiores bancos de fomento do mundo. No auge, em 2010, desembolsou um valor equivalente a 4,3% do produto interno bruto (PIB) do Brasil.

A criação do banco passou pelo crivo do Congresso Nacional. Os senadores e deputados federais aprovaram em apenas quatro meses o projeto de lei enviado por Vargas. Quando nasceu, chamava-se Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). A letra S só seria adicionada três décadas mais tarde.

Reportagens do Correio da Manhã noticiam o projeto de criação do BNDE em 1952 (imagens: Biblioteca Nacional Digital)

Documentos de 1952 guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que, apesar da velocidade na aprovação no Congresso, o projeto do BNDE encontrou adversários pelo caminho.

— As razões oferecidas não me convenceram — discursou o senador Kerginaldo Cavalcanti (PSP-RN). — Nada ficou que possa ser tido como ligeiro amparo à agricultura do país. Fonte da prosperidade nacional, a agricultura está colocada em plano tão secundário que quase não se pode divisá-la.

— Ao banco competirá realizar contratos na ordem externa, o que me parece uma invasão das atribuições constitucionais do Congresso Nacional — acrescentou o senador Atílio Vivacqua (PR-ES).

Dos argumentos contrários à criação do BNDE, o mais recorrente dizia que a nova instituição seria desnecessária, pois o país já contava com o Banco do Brasil, que poderia perfeitamente ganhar a missão extra de financiar o desenvolvimento nacional. A criação do BNDE seria, portanto, desperdício de dinheiro público.

O senador Gomes de Oliveira (PTB-SC) lembrou que em 1943, no primeiro governo de Getúlio Vargas, e em 1950, no governo do general Eurico Gaspar Dutra, a Presidência da República lançara dois grandes programas de obras:

— Em nenhuma das duas vezes se pensou na fundação de um grande e custoso banco para o financiamento das obras. Assim como previram os planos de 1943 e 1950, também agora o Banco do Brasil poderia ser o depositário do dinheiro a ser movimentado pelo governo federal.

Indústria financiada pelo BNDE: JK visita montadora de carros, e avião Bandeirante fabricado pela Embraer (fotos: divulgação e Embraer)

Na mesma linha, senador Alencastro Guimarães (PTB-DF) citou como exemplo a construção da infraestrutura portuária de Santos, na década de 1890, para escoar o café plantado no estado de São Paulo:

— Peço a atenção do Senado para mostrar como o Banco do Brasil realizou a função financiadora que hoje se julga necessário atribuir a um órgão especial. Refiro-me às Docas de Santos. Dada a concessão [a uma empresa privada], financiou-a integralmente o Banco do Brasil. Não foi, não é e não será necessária a constituição de um organismo especial.

Vivacqua interrompeu o colega para lembrá-lo da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), criada em 1941 com dinheiro norte-americano:

— Vossa Excelência poderia acrescentar que, para Volta Redonda [cidade fluminense onde se localiza a CSN], o Banco do Brasil foi o agente intermediário, representante do governo. Os títulos, emitiu-os aquele banco, avalizado pelo governo federal.

Guimarães agradeceu a contribuição e retomou o discurso pró-Banco do Brasil e anti-BNDE:

— O Banco do Brasil possui um corpo esplêndido de funcionários dignos e de experiência quase centenária. Procurem-se nos arquivos daquele banco nos últimos 30 ou 40 anos os negócios porventura mal feitos e verificar-se-á que nenhuma das más transações foi aprovada. No entanto, vamos organizar um banco sem experiência, do contínuo ao presidente, desde a primeira pedra, desde a primeira máquina, desde a primeira mesa. Parecia-me mais justo e adequado se mantivéssemos o Banco do Brasil nas suas funções de agente do governo e propulsor da economia nacional e abandonássemos a criação de fantasias como esta, extremamente onerosas e com defeitos que poderão ser irreparáveis.

Infraestrutura necessária à industrialização: usina de Furnas, e JK em obra de hidrelétrica (fotos: BNDES e Arquivo Nacional)

Os dois parlamentares que relataram o projeto de lei no Senado apresentaram argumentos contrários ao aproveitamento do Banco do Brasil e defenderam a criação do BNDE.

— É muito cara a organização do Banco do Brasil: funcionários com altos salários, despesas gerais elevadas. Um novo banco, especializado, fará o mesmo serviço muito mais barato — afirmou o senador Ivo d’Aquino (PSD-SC), relator na Comissão de Constituição e Justiça. — Além disso, como sociedade por ações que é, o Banco do Brasil não atende aos requerimentos de informações formulados por congressistas. Assim, as operações ficariam sem a fiscalização do Congresso. Não parece lógico deixar tão formidável arma política ao sabor exclusivo do governo, sem o menor controle.

— Seria tornar cada vez mais complexo o Banco do Brasil, que já é demasiadamente burocratizado, considerando a sua natureza de banco de depósitos, de banco comercial, hoje altamente complicado com as funções simultâneas de banco central em consequência de leis especiais ou de contrato [o Banco Central seria criado em 1965]. Há, ainda, o fato de não poder o banco internacional negociar com ele — acrescentou o senador Ferreira de Souza (UDN-RN), relator na Comissão de Finanças. — Em vez de atribuir novos encargos ao Banco do Brasil, é preciso mesmo pensar em aliviá-lo de muitos dos atuais, para que ele possa desenvolver mais amplamente a sua ação nos financiamentos úteis e criadores de riquezas, tornando-o mais fiscalizável e, assim, evitando as duras críticas a que vem sendo submetido.

Outro argumento contrário ao aproveitamento do Banco do Brasil era que as verbas destinadas ao desenvolvimento econômico entrariam no caixa único do banco e correriam o risco de cair em outros projetos ou até mesmo nas mãos dos correntistas comuns na forma de empréstimos.

Além disso, por fazer as vezes de banco central, o Banco do Brasil tinha o poder de emitir papel-moeda e poderia ver-se tentado, num momento de dificuldade financeira, a aumentar as emissões só para conseguir financiar os projetos de fomento econômico, o que fatalmente levaria ao aumento da inflação, prejudicando a população e a economia.

As emendas que previam a utilização do Banco do Brasil acabaram sendo derrubadas, e o projeto apresentado por Vargas em fevereiro de 1952 foi aprovado pelo Congresso em junho. Em julho, os primeiros diretores do BNDE tomaram posse.

Ponte Rio-Niterói e ferrovia em Belford Roxo (RJ), ambas financiadas pelo BNDE (fotos: Arquivo Nacional-Acervo Correio da Manhã/Acervo CDMCC)

O presidente tinha urgência na criação do BNDE porque disso dependia um empréstimo milionário do governo americano. Uma comissão formada por técnicos do Brasil e dos Estados Unidos havia estudado os gargalos da economia brasileira e apontado soluções, em especial no setor industrial. O governo americano topou financiar as ações sugeridas pela comissão, mas com a condição de que houvesse uma contrapartida do governo brasileiro em igual valor e os recursos totais fossem depositados num banco estatal que selecionasse os projetos de investimento e fiscalizasse a aplicação do dinheiro.

Um dos brasileiros que participaram da comissão e ajudaram a idealizar o BNDE foi o economista Roberto Campos, que se tornaria presidente do banco no fim dos anos 1950 e senador na década de 1980.

O economista Victor Leonardo de Araújo, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), explica por que os Estados Unidos se ofereceram para suprir as necessidades financeiras do Brasil:

— Aquele era o momento inicial da Guerra Fria. Os Estados Unidos usaram o dinheiro para criar alianças com diversos países no mundo, inclusive na América Latina, de modo a impedir que se aliassem à União Soviética ou até se tornassem comunistas. Era uma forma de incentivar o capitalismo nesses países.

Quando criou o BNDE, Vargas tinha em mente um projeto claro de Brasil. De acordo com o economista Ivan Salomão, professor da Universidade Federal Paraná (UFPR), o presidente entendia que o Estado deveria ser o indutor do desenvolvimento econômico nacional, não a iniciativa privada por conta própria, e que o progresso estava na indústria, não apenas na agricultura, que ainda era predominante.

Foi Getúlio Vargas que apresentou ao Congresso Nacional os projetos de criação da Petrobras, inaugurada em seu governo, em 1953, e da Eletrobras, fundada mais tarde, em 1962. Salomão diz:

— Vargas retomou a tradição desenvolvimentista que ele mesmo havia iniciado em seu primeiro governo [1930-1945], em substituição do liberalismo da Primeira República [1889-1930]. Para ele, o Estado deveria intervir diretamente na economia, alavancando as indústrias privadas e estatais. Essa visão se manteve até os anos 1970. Nesse período, alguns governos foram nacional-desenvolvimentistas, como o do próprio Vargas e o de Geisel. Outros foram desenvolvimentistas aliados ao capital estrangeiro, como o de Juscelino. O BNDE não foi o único instrumento do desenvolvimentismo. Os governos também concederam isenções fiscais à indústria e utilizaram a política cambial para favorecer os produtos nacionais em detrimento dos estrangeiros.

Nos primeiros anos do BNDE, quase todos os recursos foram aplicados na infraestrutura necessária ao setor industrial, especialmente usinas hidrelétricas, rodovias e ferrovias. Nos anos seguintes, o dinheiro passou a ir diretamente para as indústrias. O banco foi decisivo para que o Plano de Metas do presidente Juscelino Kubitschek saísse do papel e que o país vivesse na ditadura militar o “milagre econômico”, com taxas de crescimento extraordinariamente altas.

Roberto Campos, um dos idealizadores e primeiros presidentes do BNDE (foto: Arquivo do Senado)

Em maio de 1982, às vésperas do 30º aniversário do banco, o último presidente da ditadura, general João Baptista Figueiredo, anunciou em cadeia nacional de rádio e televisão que acabara de assinar um decreto-lei transformando o BNDE no BNDES.

Ele explicou que, agora com missão social, o BNDES passaria a financiar o combate à fome, a habitação popular, a educação, a saúde e a pequena agricultura. Para isso, o banco estatal administraria o dinheiro de um novo tributo criado pelo mesmo decreto-lei, o Fundo de Investimento Social (Finsocial), a ser cobrado das empresas. Esse tributo não existe mais.

De acordo com os documentos históricos do Arquivo do Senado, os parlamentares governistas disseram que, graças à mudança, o BNDES iria mudar o Brasil para sempre.

— A aplicação dos recursos obedecerá rigorosamente às prioridades estabelecidas pelo presidente Figueiredo — discursou o senador Lourival Baptista (PDS-SE). — Ele acionou, destarte, o processo irreversível da política de desenvolvimento social que o consagrará definitivamente na história como o presidente que deu o passo decisivo no sentido de erradicar os fatores do atraso, da pobreza e do subdesenvolvimento e, simultaneamente, promover a melhoria dos níveis do bem-estar e da qualidade de vida das camadas mais empobrecidas da população.

— Num país como o nosso, tão carente, podemos dizer que administrar não é só abrir estradas, mas tomar medidas de cunho social, como essas que o presidente Figueiredo tomou e vem tomando. Esta, aliás, tem sido uma das características dos governos revolucionários [governos da “revolução de 1964”]: olhar o povo — acrescentou o senador Jorge Kalume (PDS-AC).

Os parlamentares adversários da ditadura não compraram a versão oficial. No entender deles, a criação do tributo tinha como único objetivo tapar o rombo nas contas do BNDE, num momento em que a economia brasileira enfrentava inflação nas alturas e recessão e muitos empresários não conseguiam honrar as dívidas com o banco.

— Menos que resultante de repentino acesso de humanismo do governo, o Finsocial é expediente para suprir por mais algum tempo o déficit do governo e do BNDE face a privilégios financeiros de alguns empresários à custa de toda a sociedade. É desfaçatez, desrespeito à nação — denunciou o senador Itamar Franco (PMDB-MG).

— Sob a finalidade hipócrita de uma política social, a solução alcançada para livrar o BNDE da situação catastrófica a que a irresponsabilidade levou o outrora respeitável estabelecimento foi a criação de mais um tributo que, no fim das contas, vai ser pago por esse miserável povo brasileiro — criticou o senador Paulo Brossard (PMDB-RS). — Para requintar o sarcasmo, acrescentaram uma letra à sigla do BNDE, como se isso importasse na sua alteração substantiva. Isso não tem seriedade. Neste país não se pode fazer uma política social sem que se mude o nome de alguma coisa.

Getúlio Vargas, que criou o BNDE em 1952; e João Baptista Figueiredo, que o transformou em BNDES em 1982 (fotos: reprodução/PDT e Orlando Brito)

Na avaliação do professor Victor Leonardo de Araújo, da UFF, o S permanece hoje sendo quase um enfeite na sigla do banco:

— O entendimento do BNDES é que a função social existe porque os projetos financiados criam empregos. Esse argumento é utilizado como justificativa para o banco ser gestor de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador [FAT]. Só que essa é uma interpretação muito vaga. O que se espera de um banco social é que ele invista, por exemplo, em obras de infraestrutura urbana, como saneamento básico. Isso, porém, já é feito pela Caixa. Por essa razão, questiona-se se a área social deveria mesmo ser uma das finalidades do BNDES. De qualquer forma, são justas as críticas de que, na ação corriqueira do banco, o S da sigla acaba ficando subdimensionado.

A subchefe de gabinete da presidência do BNDES, Fátima Farah, discorda da avaliação e diz que a missão social vem, sim, sendo cumprida pelo banco:

— O banco apoia fundos socioambientais, ensino técnico, formação continuada de professores, saneamento básico, geração de empregos. Na pandemia do coronavírus, o BNDES destinou recursos a cilindros de oxigênio enviados para Manaus e à produção da vacina pela Fundação Oswaldo Cruz.

Criado para destravar a indústria, o BNDES vem desde 2018 financiando mais o agronegócio do que o setor industrial. Em 2019, o banco aplicou R$ 16 bilhões em projetos do agronegócio e R$ 9 bilhões em projetos da indústria. Isso representa uma reviravolta. Em 2009, como comparação, os montantes haviam sido de R$ 7 bilhões e R$ 63,5 bilhões respectivamente. Nos primeiros 40 anos de existência, o BNDES praticamente não financiou negócios rurais.

Para o professor Araújo, da UFF, isso não é bom. Ele lembra que o agronegócio já tem o Banco do Brasil como financiador e não precisaria do BNDES. Segundo ele, essa guinada nas prioridades do banco de fomento leva a duas conclusões:

— Primeiro, o agronegócio está fazendo uma forte pressão política sobre o poder público e conseguindo avançar sobre os recursos do banco. Segundo, o Brasil está passando por um processo agudo de desindustrialização, com fábricas fechando as portas e multinacionais indo embora. Isso não é bom porque não existe na história país que tenha se desenvolvido só com o agronegócio. A indústria contribui muito mais, seja pelo valor agregado dos produtos, pela inovação, pelos empregos. O agronegócio pode crescer, mas não em detrimento da indústria. O BNDES é um instrumento de indução do desenvolvimento econômico, mas nos últimos anos vem assistindo passivamente à desindustrialização do Brasil. Não existe mais política industrial.

O professor Ivan Salomão, da UFPR, concorda. Ele cita que o banco já chegou a desembolsar um montante anual de R$ 190 bilhões e a cifra do ano passado foi apenas um terço disso. Para Salomão, quando o governo decidir reindustrializar o Brasil, “o BNDES certamente será o cérebro, o coração e as pernas dessa política”. Ele acrescenta:

— Se a história do Brasil no século 20 tem a indústria como protagonista, a história da indústria brasileira tem o BNDES como protagonista. Não é exagero dizer que a indústria brasileira não conseguiria se desenvolver se tivesse que depender apenas de si mesma e não contasse com o apoio do Estado. É verdade que houve casos de self-made men, empresários que conseguiram crescer sozinhos, mas como regra o setor industrial brasileiro dependeu do BNDES e deve a ele o seu sucesso. Nestes 70 anos de atuação, o banco teve uma importância maiúscula na história do desenvolvimento brasileiro.

Saiba mais: 

Reportagem: Ricardo Westin
Edição: Valter Gonçalves Jr.
Pesquisa histórica: Arquivo do Senado
Gráfico: Claudio Portella
Edição de fotografia: Pillar Pedreira
Foto de capa: Fernando Frazão/Agência Brasil
Fonte: Agência Senado

Fonte: Agência Senado

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